Somos efeitos das palavras, palavras empenhadas, promessas. É da relação que cultivamos com as palavras que depende, em grande parte, a qualidade das relações que mantemos com os outros e com a gente mesmo.
Ideal seria que nossas ações fossem exemplares encarnações das nossas palavras, pois assim não nos faltaria confiança, nem em nós, nem nos outros, e a vida seguiria seu curso feito um discurso encarnado, palavra por palavra. Sonho de transparência. Na prática, porém, o rosto revelado sob o véu não é o mesmo rosto que foi velado por ele, mas sim um rosto que se divide entre um antes e um depois do véu. Assim são as palavras. Em relação ao que somos, elas costumam promover não a transparência, mas sim a opacidade.
Verdade seja dita: vivemos a solapar essa transparência sonhada, a falar uma coisa e fazer outra, o que evidencia a divisão da qual somos feitos. Mas o que então se evidencia é uma divisão, digamos, anterior àquela entre falar e fazer. É uma divisão do ser social, que se reparte em si mesmo na relação ao outro. Quem fala já é dividido, por natureza, e pode falar a partir de um lado ou de outro dessa divisão.
A divisão já se impõe no uso mesmo das palavras: o que falamos atendendo à suposta expectativa de um outro, em resposta a um ideal em nome do qual contraímos dívidas, e o que falamos quando não mais medimos as nossas palavras a partir das expectativas de um outro, quando a inibição social é vencida, por diversas razões, e os afetos tomam a frente na determinação das palavras – quando a cabeça esquenta, por exemplo, ou quando estamos eufóricos, excessivamente confiantes, momentaneamente perdoados das dívidas e das dúvidas.
Quando não a escutamos, a divisão torna-se um obstáculo intransponível ao comprometimento com as palavras. Pois é fácil dizer a um outro, fazendo dele uma testemunha, que em nome de um ideal qualquer – de saúde ou outro – adotaremos um determinado estilo de vida. Porém, não é tão fácil responder a esse ideal, na prática. Disso resulta um impasse expresso em frases do tipo: “eu quero mas eu não consigo”. É que então o ideal se torna disfuncional, pois, inquestionável, ele deixa de ser um horizonte com o qual negociamos, a partir do que podemos no presente. Torna-se um tudo ou nada e, com medo do fracasso, ficamos com o nada. Medo do erro, do fracasso, que torna impossível conhecer, experimentar e, por ventura, aprender, flexibilizar os nossos limites. E um ideal insatisfeito, quando não serve para nos fazer caminhar, cobra a sua satisfação através da culpa que sentimos ou que imputamos a um outro, um “bode expiatório”.
E bem fácil também é, quando a cabeça esquenta, falar ao outro com toda a franqueza, sem medir as consequências. Não tão fácil, porém, é sustentar em sensatez a verdade do que dissemos quando estávamos insensatos. E tanto mais difícil será realizar a integração entre sensatez e verdade – do desejo – quanto mais a divisão for ignorada ou quanto mais ela for tratada em termos de bem e mal. Pois então repetidamente nos agarramos às palavras de um outro com receio daquela parte que, em nós, não reconhecemos como nossa, pois aprendemos a temer e a odiar. E ao passo que nos agarramos ao outro, como em um círculo vicioso, repetidamente a parte que não integramos retorna para cobrar satisfação. Esse é o modo de vida do ressentimento, da culpa, do arrependimento. É o modo do qual não se sai enquanto a “pior parte” de nós não é acolhida.
Uma tal divisão, quando a ignoramos, tende a retornar também nas formas do sintoma, da inibição ou da angústia, as quais se encarregam da tentativa de resolver o conflito que não recolocamos em palavras. É sobre um tal impasse que incide a escuta do inconsciente, fazendo com que o sujeito possa se escutar, isto é: habitar de modo simultâneo os diferentes lados da sua divisão. Trata-se de dar condições à revelação do conflito entre as partes. Mas não só. Pois não basta revelar o conflito, é preciso também se apropriar criativamente das condições da sua produção. Isso passa, entre outras coisas, por um outro uso das palavras, uma outra relação com elas.
Quanto aos ideais com os quais nos comprometemos, é fundamental torná-los novamente funcionais, isto é, orientativos. Eles devem servir para orientar a solução do problema: dado aquilo que agora sou, tendo em vista o que quero ser, o que posso fazer comigo? Assim, saímos do tudo ou nada e atentamos para o que podemos fazer, negociamos o “eu quero” com o “eu não consigo” e valorizamos as tentativas – antes alguma coisa do que nada, as vezes é melhor fracassar logo, afinal, para todos a vida deve terminar no meio de alguma coisa, inconclusa, final surpresa, hora exata inexata, ninguém escolhe o último frame da sua vida. E, quem sabe, no meio do caminho para realizar o ideal, possamos perceber que foi o bastante ter caminhado. Com isso, quando a falta de sentido é afirmada, todo o sentido da viajem muda. Se a caminhada não bastar, será que ela vale a pena? Não seria melhor partir em outra direção, através de outro caminho? Quando há o movimento, o destino muda por força do que acontece ao viajante, acontecimentos que vão compondo o seu gosto, que o tornam estrangeiro a si mesmo. O ideal se transforma em sua própria realização.
Trata-se de extrair a potência daquilo que determinados modos de vida, que capturam o desejo, fazem soar como impotência. Extrair do “eu não consigo” um “eu não quero”, traduzi-lo para si: “assim eu não quero, eu posso dizer não”. Isso é um processo de singularização, que mobiliza o não enquanto inventividade da vida que transborda, enquanto se divide e se experimenta, não se limitando aos modelos sociais dados de antemão. Igualmente, com semelhante deslocamento de perspectiva se pode acolher as palavras francas em momentos de insensatez. Uma razão também irrompe quando a razão falta, uma sensatez nos momentos insensatos, uma verdade que é a verdade do desejo. É justamente quando não pensamos ao falar que falamos aquilo que pensamos. Em um tal equívoco, estamos sendo verdadeiros em relação ao desejo que nos mobiliza. A responsabilidade pelas palavras ditas em momentos de insensatez e a conquista de uma postura menos reativa dependem do reconhecimento dessa verdade.
Um outro uso das palavras, uma outra relação com elas, portanto, significa sair da lógica do ressentimento e da culpa e se responsabilizar pela própria divisão, acolher as partes malditas e, com elas, assumir a tarefa de inventar a si mesmo. Para isso a ética da psicanálise ajuda a dar um primeiro passo, fundamental, que consiste em revelar a divisão e o conflito. Uma ética da escuta, que passa, antes de mais nada, pela relação ao outro: ser escutado para se escutar.
Lindo texto, você faz um jogo de palavras que torna a leitura fluida ao mesmo tempo que densa, com muita propriedade dos assuntos abordados. Uma certa pincelada de diversos temas que vão conversando e se entrelaçando entre si.
Obrigado 🙂