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Para além dos transtornos: sobre a prática do diagnóstico em psicanálise

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Frequentemente na prática clínica recebo dos pacientes a demanda, algumas vezes explícita outras vezes implícita, por um diagnóstico: “Qual é o meu transtorno? Que nome eu dou para isso?” Tal demanda merece, é claro, ser escutada. Porém, não necessariamente atendida. Podemos admitir que a necessidade de obter um diagnóstico, por parte do paciente, seja legítima – pelas razões que discorrerei na sequência. Contudo, do ponto de vista da prática da psicoterapia, particularmente de orientação psicanalítica, o diagnóstico de transtornos mentais não é uma condição indispensável para a eficácia terapêutica. E pode, pelo contrário, ser um obstáculo para que o trabalho aconteça, sobretudo se o que se busca é um diagnóstico fechado. Isso porque a condição para a prática psicanalítica é a abertura: a sustentação do não saber como condição para a construção de um saber. Há uma diferença fundamental entre o diagnóstico de transtornos, derivado da prática médica, e a prática diagnóstica tal como ela é exercida na psicanálise. O objetivo desse artigo é contribuir para o esclarecimento dessa diferença.

É notável, nos últimos anos, uma inflação nos diagnósticos de transtornos. Não somente no dia a dia da prática clínica de psicólogos e psiquiatras, mas também no dia a dia das redes sociais digitais, no autodiagnóstico impulsionado pela produção massiva de conteúdos educativos/informativos que versam sobre o tema.

Em si mesmo, tal fenômeno não é um mal. Seu valor depende da perspectiva desde a qual o observamos. Por um lado, a popularização desses diagnósticos ajuda a implicar os pacientes em seus próprios tratamentos, diminuindo a distância entre estes e os ditos especialistas, e atenua a angústia que provém de um sofrimento cuja dimensão não conhecemos: quando concebo que minha desatenção faz parte de um “quadro” chamado TDAH ou que minha instabilidade emocional faz parte de um quadro chamado Borderline, tal contorno ameniza o meu medo ao tornar conhecido o desconhecido; além disso, quando passo a interpretar os meus desvios em relação ao “normal” como sintomas de uma doença, e não como falhas de caráter, é provável que eu me culpe menos. Portanto, olhando por esse lado, o diagnóstico de transtornos cumpre a sua função e pode ser compreendido como um bem – sem contar que serve para orientar a intervenção de algumas práticas terapêuticas, sobretudo pelas vias medicamentosas e comportamentais.

Por outro lado, quando o diagnóstico fica nesse nível, na tentativa precipitada de fechá-lo para estancar a angústia, então tendo a ficar limitado em minha capacidade de falar e de saber sobre mim mesmo: não sei mais dizer o que sinto, a não ser a partir das palavras de um outro, tomando a mim como um objeto, como se não tivesse um universo interior; tampouco sei procurar a razão do que sinto, pois já a encontro pronta nos manuais diagnósticos e em suas extensões pelas redes mundo afora. E, se isso acontece, são grandes as chances de a angústia voltar com força redobrada.

O motivo disso é que as explicações sobre as coisas que nos fazem sofrer e que não controlamos (não somente os nossos sintomas, como também os infortúnios da vida) são, em si mesmas, construções defensivas contra a angústia. A eficácia terapêutica das explicações consiste na produção de sentido. Explicar é dar um sentido ao acontecido. Para a realidade psíquica, inclusive, quando explico o acontecimento, sinto como se o dominasse. Daí o efeito apaziguador. Ilusório, para a realidade exterior, mas eficaz no manejo da angústia. Ou seja: diagnosticar a causa do sofrimento e nele encontrar um sentido é essencial para que a eficácia da terapia possa se colocar no horizonte. Sem isso, a angústia torna-se tão insuportável que não é possível avançar no tratamento. Porém, há uma diferença entre dominar a face angustiante dos sintomas e tentar extinguí-la, através de um diagnóstico fechado, tal como geralmente acontece no diagnóstico de transtornos. Não apenas tal extinção é impossível, bem como também a sua tentativa impede qualquer efeito terapêutico por meio das palavras, que é o que buscamos em psicanálise. Para que possamos trabalhar terapeuticamente através das palavras, precisamos manter em aberto o caminho da verdade. O equivalente do diagnóstico, nesse caso, consiste nas próprias hipóteses levantadas pelo paciente, baseadas naquilo que ele sabe e lembra da sua história, bem como nas interpretações, pontuações e construções através das quais o psicanalista busca lhe dar auxílio.

Construir hipóteses sobre a causa dos nossos sintomas é essencial para que possamos dimensionar o que eles significam, dar um contorno a eles, e isso por si só tranquiliza-nos o suficiente para que possamos apostar em uma terapia, seja ela qual for. Isso é verdade para qualquer prática terapêutica, tanto para aquelas que se baseiam no diagnóstico de transtornos bem como para o tratamento psicanalítico. Mais do que isso, ambas as práticas diagnósticas possuem uma dupla função: não se trata apenas de dar um contorno aos sintomas, diagnosticando a causa, mas também e sobretudo de orientar as práticas terapêuticas. Isto é: se o psiquiatra geralmente vai prescrever as medicações de acordo com o transtorno que ele diagnosticou, o psicanalista, por sua vez, vai conduzir as sessões de terapia de acordo com a sua própria prática diagnóstica; ou seja, o modo como ele irá intervir no discurso do paciente vai estar fundamentado naquilo que este, ao falar sobre si, revelou acerca da sua história e do funcionamento do seu inconsciente. Na terapia psicanalítica, contudo, é imprescindível que o tratamento não esteja orientado pela necessidade de fechar um diagnóstico, pois é justamente através da abertura que a psicanálise acontece.

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